
Epidemia Silenciosa: Brasil Concentra o Segundo Maior Número de Casos de Hanseníase no Mundo
Sabrina Paula Pereira, Marcos S.P. de Carvalho, Jicaury Roberta Pereira da Silva
Pós-graduandos do Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia (UFSJ-CCO)
v.3, n.2, 2025
Fevereiro de 2025
Hanseníase, popularmente conhecida como lepra, é uma doença infecciosa crônica (doença causada por agente infeccioso, no caso uma bactéria, e que tem duração prolongada) causada pela bactéria Mycobacterium leprae [1]. É uma das mais antigas enfermidades que afetam a humanidade, com provável origem na Ásia ou África, embora essa questão ainda seja discutida. Registros indicam sua presença há mais de três mil anos na Índia, China e Japão, e no Egito, onde há evidências da doença desde cerca de 4.300 anos antes de Cristo (segundo documentos da época de Ramsés II). Além disso, foram encontrados esqueletos egípcios com sinais de hanseníase datados do segundo século antes de Cristo [1-2].
A doença é classificada como granulomatosa crônica (condição genética rara que afeta o sistema imunológico, ou seja, o sistema de defesa) em que a resposta imunológica do corpo desempenha um papel muito importante na evolução da doença [2]. As manifestações de sintomas varia conforme a resposta do sistema de defesa da pessoa infectada [3]. Um sistema imunológico eficaz tende a controlar a infecção, enquanto uma resposta inadequada permite o avanço da doença com sintomas mais graves [3]. A doença tem um longo período de incubação (intervalo entre a entrada de um agente infeccioso no organismo e o aparecimento dos primeiros sintomas da doença), variando de meses a anos, o que pode dificultar sua identificação precoce [4]. O manejo adequado da hanseníase inclui diagnóstico precoce, tratamento adequado e prevenção de sequelas [5].
Essa doença ainda é um problema de saúde pública em várias regiões do mundo, principalmente na África, sudeste asiático e América Latina, incluindo o Brasil [6]. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2023 foram registrados mais de 200 mil novos casos globais, com Índia, Brasil e Indonésia sendo os países mais afetados [6]. O Brasil ocupa a segunda posição mundial em número de casos, com cerca de 20 mil novos casos diagnosticados anualmente [7] (Figura 1).

Figura 1: Mapa da distribuição dos casos de Hanseníase notificados no mundo, em 2021, e porcentagem entre Índia, Brasil, Indonésia e demais países. Anos de 2016 a 2021.
Fonte: Organização Mundial da Saúde.
Apesar dos avanços na detecção e no tratamento, o cuidado com pacientes contaminados ainda enfrenta desafios, especialmente em regiões mais pobres e com acesso limitado aos serviços de saúde [8]. O estigma social associado à doença, em grande parte devido ao medo de contágio e à desinformação, muitas vezes se dá devido às lesões causadas pela doença em estágio avançado (deformidades físicas e amputações), dificultando a busca precoce por diagnóstico e tratamento [8-9]. A OMS tem como meta a eliminação da hanseníase como problema de saúde pública, o que significa reduzir a incidência para menos de um caso por 10 mil habitantes [9].
A hanseníase pode se apresentar em duas fases principais, que variam com base na resposta imunológica do paciente e na quantidade de bacilos (bactérias em forma de bastonete) presentes no organismo [10]. A fase paucibacilar (PB), também conhecida como hanseníase tuberculóide, onde há um baixo número de bacilos no organismo, com poucas lesões na pele, o que resulta em características clínicas mais discretas [11]; e a fase multibacilar (MB) também conhecida como hanseníase lepromatosa quando existem mais de cinco lesões dermatológicas levando a uma maior multiplicação de bacilos no organismo, ocasionando em manifestações mais graves [12].
Figura 2: (A) - Hanseníase paucibacilar. (B) - Hanseníase multibacilar.
Fonte: Banco de imagens do Instituto Lauro de Souza Lima. Brasil 2017.

Essas duas formas da doença apresentam características clínicas, imunológicas, dermatológicas e microbiológicas distintas [13] (Figura 2).
A principal porta de entrada da bactéria no organismo é o trato respiratório superior (trato este que inclui o nariz, a faringe e a laringe e é responsável por filtrar, umidificar e conduzir o ar até os pulmões) [14]. No entanto, a transmissão requer contato próximo e prolongado, o que torna a doença mais prevalente em comunidades com condições socioeconômicas desfavoráveis, onde a aglomeração de pessoas e a falta de acesso a serviços básicos de saúde são mais comuns [14-15]. Fatores como a predisposição genética (via condição herdada dos pais, na qual uma pessoa tem mais chance de desenvolver algumas características ou problemas de saúde) e a resposta imune do indivíduo também influenciam o desenvolvimento da doença, como mencionado [16]. Portanto, não é incomum que em uma mesma família, apenas alguns indivíduos desenvolvam a doença, mesmo estando expostos às mesmas condições ambientais e à mesma fonte de infecção [17]. É importante ressaltar ainda que, indivíduos em tratamento com poliquimioterapia (PQT) (estratégia de tratamento medicamentoso que consiste na associação de vários fármacos para tratamento de doença) deixam de ser fontes de transmissão da doença em poucos dias após o início da medicação [18].
O diagnóstico da doença envolve uma combinação de avaliação clínica e exames laboratoriais, com o objetivo de identificar a presença de Mycobacterium leprae, avaliar a extensão das lesões cutâneas e nervosas, e classificar a doença como (PB) ou (MB) [18]. A detecção precoce é essencial para prevenir deformidades permanentes e complicações neurológicas [19].
Além do exame clínico, os testes laboratoriais complementares como a baciloscopia, realizada a partir do raspado de lesões cutâneas ou de lóbulos da orelha para identificar a presença de bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR), o teste da sensibilidade cutânea, a histopatologia e o teste sorológico que detectam anticorpos específicos contra a M. leprae, podem auxiliar no diagnóstico [20]. Em regiões onde a doença é comumente diagnosticada, a triagem ativa de contatos domiciliares e o diagnóstico precoce são essenciais para o controle da hanseníase [21]. Entretanto, o diagnóstico precoce, ainda enfrenta desafios a serem solucionados, como a falta de testes mais sensíveis e específicos que identifiquem a bactéria em pacientes assintomáticos (sem sintomas aparentes) [22].
O tratamento da hanseníase é altamente eficaz e consiste em uma PQT que combina os medicamentos rifampicina, dapsona e clofazimina [23]. O esquema terapêutico depende da forma clínica da doença. Por exemplo, os pacientes paucibacilares são tratados por seis meses, enquanto os multibacilares recebem o tratamento por 12 meses [24]. A combinação desses antibióticos é fundamental para erradicar o bacilo e prevenir o desenvolvimento de resistência bacteriana [25].
A rifampicina, um dos fármacos mais importantes da PQT, tem efeito bactericida rápido e é essencial para a cura da doença [25-26]. Já a dapsona e a clofazimina atuam de forma bacteriostática, ou seja, impedindo a multiplicação do bacilo [27]. A adesão ao tratamento é fundamental, e os pacientes devem ser monitorados de perto para evitar a interrupção, que pode levar à resistência bacteriana [27-28].
Um dos grandes desafios no controle da hanseníase é identificar a resistência à dapsona e, em menor grau, à rifampicina [29]. A resistência à dapsona foi detectada pela primeira vez na década de 1960, principalmente em áreas onde a monoterapia (terapia que utiliza apenas um medicamento) era utilizada [30]. Com a introdução da PQT o risco de resistência diminuiu significativamente, mas alguns casos de resistência ainda são registrados [30-31]. A OMS recomenda a realização de testes de resistência em pacientes que não respondam ao tratamento para ajuste do esquema terapêutico [32].
Casos de resistência à rifampicina, embora raros, são extremamente preocupantes, pois essa droga é o principal agente bactericida (que causa morte) contra o Mycobacterium leprae [33]. A resistência pode ocorrer devido ao uso inadequado da medicação, como interrupções frequentes no tratamento [33-34]. Para enfrentar esse problema, é crucial garantir a adesão ao tratamento e melhorar os mecanismos de vigilância para a detecção precoce de resistência [34].
Portanto, a hanseníase, longe de ser uma doença do passado, persiste como um grave problema de saúde pública no Brasil, ocupando a incômoda segunda posição no ranking mundial de casos [35]. A designação de "epidemia silenciosa" revela a magnitude do desafio, marcado pela subnotificação (associada ao fato de que poucos dos casos existentes serem reportados), estigma social e desigualdades regionais. Apesar dos avanços no diagnóstico e tratamento, a persistência da doença exige um esforço contínuo e multidisciplinar.
É fundamental fortalecer as ações de prevenção, diagnóstico precoce, tratamento e reabilitação, além de investir em educação e conscientização da população. A erradicação da hanseníase no Brasil é um objetivo ambicioso, mas alcançável, desde que haja compromisso político, recursos financeiros e a participação ativa de todos os setores da sociedade [35-36].
Referências Bibliográficas
[1] Maymone MBC et al. Leprosy: Clinical aspects and diagnostic techniques. J Am Acad Dermatol. v. 83, n. 1, p. 1-14, 2020. Disponível através do link: https://doi.org/10.1016/j.jaad.2019.12.080.0. Acesso em: 05 fev. 2025.
[2] Belachew WA, Naafs B. Position statement: LEPROSY: Diagnosis, treatment and follow-up. J Eur Acad Dermatol Venereol. v. 33, n. 7, p. 1205-1213, 2019. Disponível através do link: https://doi.org/10.1111/jdv.15569.%20Acesso%20em:%2005%20fev.%202025.
[3] Khadilkar SV et al. Neuropathies of leprosy. J Neurol Sci. v. 420, p. 117288, 2021. Disponível através do link: https://doi.org/ 10.1016/j.jns.2020.117288. Acesso em: 05 fev. 2025.
[4] Sil A, Das A. History of leprosy in India: An overview of historic and modern contributions. Clin Dermatol. v. 40, n. 6, p. 691-699, 2022. Disponível através do link: https://doi.org/10.1016/j.clindermatol.2022.07.004. Acesso em: 05 fev. 2025.
[5] Beauvillain Q, et al. Autochthonous leprosy in Europe: a case report and literature review. Int J Infect Dis. v. 110, p. 111-113, 2021. Disponível através do link: https://doi.org/10.1016/j.ijid.2021.07.023. Acesso em: 05 fev. 2025.
[6] WHO - World Health Organization. Global Leprosy (Hansen’s disease) update, 2021. 2022. Disponível através do link: https://www.who.int/publications/i/item/who-wer9736-429-450#:~:text=Overview,133%20802%20cases%20in%202021. Acesso em: 05 fev. 2025.
[7] Brasil - Ministério da Saúde. Hanseníase: Uma abordagem de saúde pública. 2023. Disponível através do link: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-publica/hanseniasis. Acesso em: 05 fev. 2025.
[8] Bai S, et al. Advances in the treatment of leprosy: A comprehensive review. Journal of Dermatological Treatment, v. 34, n. 1, p. 1-10, 2023.
[9] WHO - World Health Organization. 2023. Leprosy fact sheet. Disponível através do link: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/leprosy. Acesso em: 05 fev. 2025.
[10] López M, et al. Multibacillary leprosy: Diagnosis, treatment, and outcomes. Tropical Medicine and Infectious Disease, v. 7, n. 4, p. 82, 2021.
[11] Kumar A, et al. A comparative study of diagnostic methods in paucibacillary and multibacillary leprosy: Insights from a tertiary care center. Indian Journal of Dermatology, v. 66, n. 2, p. 140-145, 2021.
[12] Nery R, et al. Clinical and laboratory diagnosis of leprosy: Insights into paucibacillary and multibacillary forms. Leprosy Review v. 91, n. 4, p. 371-377, 2020.
[13] Vivekanandhan N, et al. Diagnostic tools in leprosy: A focus on PCR and serological tests in paucibacillary and multibacillary cases. BMC Infectious Diseases, v. 17, n. 1, p. 75, 2017.
[14] López H, et al. Molecular epidemiology of leprosy: Insights from whole genome sequencing. Frontiers in Microbiology, v. 11, p. 23, 2020.
[15] Saxena E, et al. Understanding the transmission and diagnosis of leprosy: Current perspectives and future directions. Tropical Medicine and Health v. 50, n. 1, p. 14, 2022.
[16] de Souza B, et al. Leprosy transmission and diagnostic challenges: Insights from Brazil. PLOS Neglected Tropical Diseases v. 15, n. 3, p. e0009138, 2021.
[17] Vora, et al. Leprosy and its association with neuropathy: An overview. Neurobiology of Disease v. 171, p. 105568, 2023.
[18] Moraes FJR, Lira RM. Transmission and diagnostic approaches in leprosy: A comprehensive review. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo v. 61, p. e20, 2019. Disponível através do link: htps://doi.org/10.1590/S1679-45082019RT612020. Acesso em: 05 fev. 2025.
[19] Mohanty A, et al. Recent advancements in the diagnosis and transmission understanding of leprosy. Journal of Microbiology and Infectious Diseases, v. 8, n. 2, p. 84-91, 2018.
[20] Figueiredo B, et al. Leprosy transmission: Current insights and diagnostic methodologies. Brazilian Journal of Infectious Diseases, v. 21, n. 6, p. 726-733, 2017.
[21] Salinas H, et al. Leprosy in the modern era: Diagnosis and management. Clinical Microbiology Reviews, (2022). 35(1), e00173-21.
[22] Pereira A, et al. Genetic factors associated with susceptibility to leprosy: A review. Journal of Infection and Public Health, v. 15, n. 3, 299-306, 2022.
[23] Dahl N, et al. Treatment of leprosy: Current challenges and future directions. International Journal of Infectious Diseases v. 121, p. 34-42, 2022.
[24] Almeida J, et al. Efficacy of multidrug therapy for leprosy: A systematic review of recent studies. Journal of Antimicrobial Chemotherapy v. 78, n. 2, p. 322-331, 2023.
[23] Oliviera M, et al. Impact of leprosy on quality of life and mental health: A review. International Journal of Environmental Research and Public Health, (2023). 20(5), 3021.
[24] Singh R, et al. Current trends in the use of antibiotics for leprosy treatment: A narrative review. Leprosy Review v. 92, n. 3, p. 298-306, 2021.
[25] Rao T, et al. Treatment of leprosy with rifampicin and dapsone: Efficacy and side effects. Journal of Clinical Microbiology v. 59, n. 1, p. e01354-20, 2021.
[26] Zhao X, et al. The role of antibiotics in the management of leprosy: A review of recent studies. International Journal of Infectious Diseases, v. 100, p. 204-210, 2020.
[27] Lima L, et al. Comparison of treatment regimens for leprosy: Efficacy of multidrug therapy. BMC Infectious Diseases v. 20, n. 1, p. 750, 2020.
[28] Tiwari H, et al. Antibiotic therapy in leprosy: Current insights and future perspectives. Current Opinion in Infectious Diseases, v. 36, n. 3, p. 283-290, 2023.
[29] Miller A, et al. The impact of antibiotic treatment on leprosy transmission:Evidence and implications for control strategies. Clinical Microbiology and Infection v. 28, n. 11, p. 1454-1460, 2020.
[30] Agarwal G, et al. The role of daptomycin in treating multidrug-resistant leprosy: A case report and literature review. Journal of Infection and Public Health v. 16, n. 1, p. 119-123, 2023.
[31] Chakraborty N, et al. Daptomycin: A potential therapeutic agent for resistant strains of Mycobacterium leprae. Antimicrobial Agents and Chemotherapy v. 66, n. 10, p. e01023-22, 2022.
[32] WHO - World Health Organization. Global leprosy strategy 2021–2030: Towards a leprosy-free world. Geneva: World Health Organization. 2021. Disponível através do link: https://www.who.int/publications/i/item/9789240060468. Acesso em: 05 fev. 2025.
[33] Patel G, et al. Use of daptomycin in leprosy treatment: Clinical insights and pharmacological considerations. BMC Infectious Diseases v. 20, n. 1, p. 102, 2020.
[34] Mishra A, et al. Daptomycin for treating leprosy: A promising alternative in multidrug-resistant cases. International Journal of Infectious Diseases v. 7, p. 1245, 2020.
[35] Stefani G, et al. A narrative review. Tropical Medicine and Health, v. 2022, p. e1247, 2022.
[36] Ursini S, et al. The role of social determinants in the control of leprosy. BMC Public Health, v. 35, p. e34120e20, 2022.