O que é delação premiada?
Fernanda Maria Policarpo Tonelli¹, Naony Sousa Costa Martins²
¹Editora chefe do "À Luz da Ciência"
²Editora do "À Luz da Ciência"
v.2, n.12, 2024
Dezembro de 2024
A corrupção é considerada causa relevante para fazer com que os brasileiros percam a confiança nas instituições governamentais [1], e também é um fator que favorece o crime organizado [2].
A origem das organizações criminosas é antiga, e remete às chamadas societas sceleris: termo usado para se referir a sociedades de criminosos que já atuavam, por exemplo, na Idade Média [3]. No entanto, a máfia italiana merece destaque dada a duração de sua existência e relevância no cenário internacional [4].
No século XVIII a máfia siciliana, como a Casa Nostra, por exemplo, expandiu no território italiano de Palermo para diferentes regiões da Sicília [5], dominando-a já na segunda metade do século XX. Neste período, várias organizações mafiosas surgiram em diferentes locais da Itália como a Camorra de Nápole e a N’drangheta da Calabria [6].
Os Estados Unidos da América também vivenciaram em sua história momento de insegurança gerado pelas organizações criminosas. Este período teve como marco a década de 20: década na qual foi instituída a Lei Seca no país e a atuação criminosa cresceu sob forte influência da máfia italiana [7]. “Lucky” Luciano, cujo nome de batismo era Salvatore Lucania, estruturou o contrabando de licor, que virou alvo da polícia federal americana (o FBI) no final do século XX [8]. Assim como na Itália, as organizações criminosas em território norte-americano foram responsáveis por aumento de criminalidade, instabilidade política e temor por parte dos cidadãos.
Figura 1: Localização geográfica das principais máfias italianas.
Fonte: https://imagenes.eldebate.com/files/vertical_composte_image/uploads/2023/01/30/63d7d6e66a69a.jpeg.
Para combater este cenário, a justiça italiana valeu-se da delação premiada, prevista no código penal italiano desde a década de 70. Nos anos 90 a operação “mãos limpas” repercutiu mundialmente na mídia devido ao combate à máfia, sendo um episódio de destaque a delação premiada efetuada por Tommaso Buscetta (o “Dom Masino”). Este, após abandonar uma máfia e juntar-se à rival, teve familiares assinados em retaliação; consequentemente decidiu cooperar e delatar ex-aliados. A operação desmantelou a organização criminosa e resultou em cerca de 300 prisões [9].
Já no Brasil, os primórdios do crime organizado remetem ao cangaço entre os séculos XIX e XX. Atividades como sequestro, roubo e estupro faziam parte das atividades dos cangaceiros [10]. Posteriormente as organizações que exploravam o “jogo do bicho” e a partir da década de 70 o Comando Vermelho (surgido dentro do sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro) e o Terceiro Comando (oriundo de divergência do Comando Vermelho) tornaram-se relevantes no cenário da criminalidade no Brasil. Na década de 90, o Primeiro Comando da Capital, conhecido como PCC, foi estruturado dentro de estabelecimento penitenciário de segurança máxima em Taubaté. A criminalidade cresceu a tal nível que não ficou retida aos muros das penitenciárias, causando grande instabilidade e o temor da população [11]. Logo, seriam necessárias medidas de contenção das práticas delituosas das organizações criminosas.
Foi neste cenário que a delação premiada começou a ser evidenciada na legislação nacional, sob influência do que ocorreu na Itália e nos Estados Unidos.
Quando as autoridades policiais estão apurando crimes cometidos por estas organizações, é interessante poder contar com a colaboração de um ou mais dos envolvidos. Logo, no Brasil existe um ramo do direito chamado direito processual penal, que contempla a possibilidade de existir a delação premiada.
Na verdade, o termo “delação premiada” passou a fazer parte da rotina dos brasileiros, popularizando-se ao ser abordado de maneira reiterada pela mídia, refletindo o caos vivenciado no Brasil especialmente durante a “Operação Lava Jato” [12].
Esta delação concede benefícios ao investigado ou acusado que coopera com os investigadores fornecendo auxílio nas investigações e no processo criminal (por exemplo fornecendo informações detalhadas sobre o crime ou onde encontram-se os seus comparsas). Dentre estes benefícios pode-se mencionar, por exemplo, redução da pena e até mesmo o perdão judicial [11].
Os acordos para o exercício da delação premiada podem ser firmados entre o indivíduo delator e o ministério público ou entre o indivíduo delator e a autoridade policial, sob supervisão e homologação do judiciário (ou seja, o juiz deve acompanhar o processo). Gera, para aquele que coopera, conforme já destacado, benefícios como o perdão judicial, redução da pena ou aplicação de medida menos severa [13].
A delação premiada, para ser realizada, deve seguir o que consta no artigo 4° da Lei nº 12.850 do ano de 2013 (lei que define organizações criminosas). Segundo este artigo, aquela pessoa que se beneficia desta delação deve identificar as outras pessoas que participaram, revelar detalhes do funcionamento da organização criminosa, permitir que se recupere produtos ou dinheiro envolvidos no cometimento do crime, dizer a localização de possível vítima e/ou fornecer informações para que se previna novos delitos desta mesma organização criminosa [14].
Esta ferramenta do direito facilita a identificação de chefes de organizações criminosas e daqueles envolvidos em grandes esquemas de corrupção. A Operação Laja-Jato, por exemplo, foi iniciada em 2009 e investigava rede de doleiros (pessoas que negociam a moeda norte-americana – o dólar – sem ser por meio do mercado convencional). Tal operação elucidou esquema de corrupção na Petrobras envolvendo, por exemplo, contratos com empreiteiras como o de construção de Angra 3 (usina nuclear localizada em Angra dos Reis - RJ). A primeira Delação Premiada, de Alberto Youssef, ocorreu em 2014. A Delação de Marcelo Odebrecht e de outros empresários da Empreiteira Odebrecht reuniram centenas de nomes de políticos e demais envolvidos. Da mesma forma, os irmãos Joesley e Wesley Batista do Grupo de Frigorífico JBS, delataram ter pagado propina a mais de 1800 políticos pelo Brasil [17].
Logo, a delação premiada possui a capacidade de favorecer a identificação de criminosos, mas necessita ser utilizada com seriedade para que seja efetiva e eficaz para evitar que estas pessoas fiquem sem punição.
Referências Bibliográficas
[1] Dos Santos SO, et al. A Influência Da Corrupção E Do Narcotráfico No Estado: Uma Revisão. Revista Orbis Latina. 2022; 12(3): 1-12. Disponível através do link: https://revistas.unila.edu.br/orbis/article/view/3445. Acesso em: 05 dez. 2024.
[2] Buscaglia E. The Vertical Integration of Organized Crime Linked to Political Corruption: An Economic Analysis of Asset Forfeitures and Human Rights. Journal of Institutional Studies. 2017; 3(2): 1-15. Disponível através do link: https://doi.org/10.21783/rei.v3i2.232. Acesso em: 05 dez. 2024.
[3] Ferro ALA. Crime organizado e organizações criminosas. Curitiba: Juruá, 2009.
[4] Ribeiro FSdeC. A infiltração de agentes como meio de investigação no combate ao crime organizado: compatibilização constitucional e reflexos probatórios. Disponível através do link: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/27215/1/2013_tcc_fscribeiro.pdf. Acesso em: 05 dez. 2024.
[5] Ferreira TC. Estudo Do Crime Organizado No Brasil: Análise Da Existência E Ofensividade Das Máfias. Revista Intertemas. 2011; 22(22): 1-9. Disponível através do link: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/Direito/article/view/2875. Acesso em: 05 dez. 2024.
[6] Facchioli BB, Aquotti MVF. Crime organizado: aspectos relacionados à sua criação e estrutura. Disponível através do link: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/download/5670/5390. Acesso em: 05 dez. 2024.
[7] Da Silva TG. Lei seca, institucionalismo e federalismo. Disponível através do link: https://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/42/1471230997_ARQUIVO_TiagoGomesdaSilva.pdf. Acesso em: 05 dez. 2024.
[8] Rovner ES. La mafia en los Estados Unidos: un ensayo biblioqrafico. Innovar. 2000; 16(16): 1-14. Disponível através do link: https://revistas.unal.edu.co/index.php/innovar/article/view/24385/24985. Acesso em: 05 dez. 2024.
[9] Faria IA, Fontana N. Delação premiada e seus impactos na sociedade. Revista Jurídica Luso-Brasileira. 2021; 7(3): 1-14. Disponível através do link: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2021/3/2021_03_0967_0982.pdf. Acesso em: 05 dez. 2024.
[10] Bezerra ML. A experiência italiana no confisco de bens de integrantes de grupos mafiosos. Revista da AGU. 2015; 14(4): 1-13. Disponível através do link: https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/54443261/A_Experiencia_Italiana_No_Confisco_De_Bens_De_Integrantes_De_Grupos_Mafiosos_-libre.pdf?1505497759=&response-content-disposition=inline%3B+filename%3DA_Experie_ncia_Italiana_No_Confisco_De_B.pdf&Expires=1693084528&Signature=SBHvJjULOLHOcc0dtuNoUF-HQU4PllwKH0R0XWfZw~SQpS0eDnJv7aqDeeP6FjGy36gNDnSH6fxCx-Dg4AyWhQo8HP7dHod~-EwIwfe1aioaBmX0IlkACVZMKsd8zU6zxzq8Ln-RlCnxb~UyCtSRiy5gX0QCKLvvG8Qf0LkfzUl7TgNJetCLA8lLtJWmOUxqnBAMqLUC-LvQRDcy8SLOc4r5npdJkfWGTQcV5uGvmIKJT9-r~c3yKJb5eSHCWcYV8xiFNzDW9iKcY4QBho6XINIsvBzfFaiJrt2DvRKhIbMIywV6HWdqFXdGeDYlDgx3GReRtDVFNs1ya9bXG5WJaw__&Key-Pair-Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA. . Acesso em: 05 dez. 2024.
[11] De Oliveira DS, Cury LVM. Delação Premiada, Contexto Histórico E Sua Aplicação. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação. 2023; 9(6): 1-15. Disponível através do link: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/10551/4367. Acesso em: 05 dez. 2024.
[12] Bottimo T. Cooperation agreements and incentives to cooperate in the criminal procedure: a critical analysis of the “Lava Jato Operation”. Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2016; 122: 1-11. Disponível através do link: https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/54189006/Cooperation_Agreaments_in_Carwash_Operation-libre.pdf?1503246460=&response-content-disposition=inline%3B+filename%3DCooperation_agreements_and_incentives_to.pdf&Expires=1693359523&Signature=PlJgc3oE22J6N1sPU8Orhdn54Uz33t5pdufSfQLDNhm2eDCJ78JghHjsqes1Bkalf39t2eLNk4fm3~g~5HF1RuoVFEzn5RxO9-QQr4mYWMUZQGhpTzimWlqlV4TtFSjO2OuJlnIpqfGOctSgTZo3-G6OD~xwEFJQxKJV11xexI7gmc3gmxzfRWPoT5xh7dFwQy2tMx-Pp5nrRmGGiX6pKJGVngcwcX-ecmYBrtLH-S2XXA-pblOal7X3LBat-slVCAP1S-HFr4IpKVT5ehjsDQWEldt4ElL--etnnyHb1O211dcFbwB6LJjdTTgkn0H~ID2e9WOxuFUFjOzRqGii7A__&Key-Pair-Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA . Acesso em 05 dez. 2024.
[13] Bittencourt CR, Busato PC. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei nº. 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014
[14] Brasil. Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013. Lei das Organizações Criminosas. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível através do link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm. Acesso em: 05 dez. 2024.
[15] Souza MH. Delação Premiada: Instituto Eficaz ou Patrocinadora da Impunidade. Disponível através do link: http://45.4.96.19/bitstream/aee/17454/1/2017%20-%20TCC%20-%20MURILO%20HENRIQUE%20SOUZA.pdf . Acesso em: 05 dez. 2024.