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Anfíbios que “amamentam”: estratégias evolutivas e cuidado parental

Júlia Alves Camelo Brasil, Laísa Aparecida Santos, Lucas de Araújo Gomes, Maria Eduarda Ferreira Santiago, Sarah Alves Vilela Almeida

Graduandos da UFSJ-CCO

v.2, n.7, 2024
Julho de 2024

Mamíferos são animais que possuem, entre outras características, pelos ou couro, três pequenos ossos em sua orelha interna, coração com quatro cavidades e capacidade de regular sua própria temperatura corporal [1]. Talvez a característica mais distinta dessas criaturas seja a presença de glândulas mamárias, que são glândulas de suor modificadas para a produção de uma secreção nutritiva, o leite, que alimenta os filhotes [2]. Contudo, uma descoberta recente em um grupo de anfíbios (o grupo de animais que compreende os sapos, rãs e salamandras, por exemplo) peculiares vai de encontro a essa marcante habilidade: cobras-cegas que “amamentam” seus filhotes [3,4].

Cobra-cega (Figura 1) é o nome comum das cecílias que, curiosamente, não são cobras, mas sim anfíbios. Anfíbio é uma palavra de origem grega que significa “duas vidas”, nomenclatura mais que apropriada, considerando que a maioria desses animais depende da água para depositar seus ovos e para concluir sua metamorfose - mudanças corporais que ocorrem desde a forma de ovo até a forma adulta [5,6].

Na história da evolução, os anfíbios surgiram de um elo com os peixes de quatro membros, representando uma transição entre o modo de vida estritamente aquático e o terrestre. Evolutivamente, eles são divididos em três grupos: sapos e rãs fazem parte da ordem Anura, salamandras compõem a ordem Caudata, enquanto as cecílias formam a ordem Gymnophiona.

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Figura 1: Siphonops annulatus: a cecília.

Fonte: https://www.herpetocapixaba.com.br/post/cec%C3%ADlia-uma-excelente-m%C3%A3e

Os anfíbios têm em comum uma pele úmida e pegajosa que, por não possuir uma camada de revestimento proteica de queratina como os répteis e os mamíferos, permite a respiração e  a absorção de  fluidos diretamente; possuem cores e formas variadas, sendo o maior deles a salamandra gigante japonesa, com 1,8m de comprimento e peso de 63 kg, enquanto o menor pode medir menos de um centímetro [7,8].

As cecílias - do grego “caecus”, que significa “cego” ou “sem visão” - são anfíbios de corpo cilíndrico, de cor preta cintilante, segmentados e sem membros, que se movem de forma rastejante, fator de confusão frequente com as cobras e as minhocas. São encontradas nas áreas quentes do planeta, sendo mais comuns na América do Sul, com uma variação de tamanho de 10 centímetros a um metro [9]. 

Pelo seu modo de vida, raramente são vistas pelos humanos, o que contribui para que sejam confundidas com outros animais. Por serem escavadoras e viverem em tocas no subsolo, onde há pouca luz, ao longo da evolução seus olhos foram selecionados para servirem basicamente para detectar a luminosidade, enquanto a captação de estímulos químicos, por meio de pequenos tentáculos na face, é sua principal forma de orientação no espaço e de localização de alimento. Possuem uma boca com vários dentes que, apesar de afiados, não trazem risco aos humanos e são usados para prender suas presas [3,9].

A reprodução e as formas de cuidado parental das cecílias são fascinantes e surpreendentemente complexas. Evolutivamente, no início da sua história, esses anfíbios, assim como a maioria, eram ovíparos - ou seja, botavam ovos. Porém, ambientes secos e instáveis, que ameaçavam a integridade dos ovos frágeis e gelatinosos desses animais, pressionaram a seleção de espécies de cecília capazes de “guardar” os ovos no interior de seus corpos e liberar os filhotes completamente desenvolvidos - o que é chamado viviparidade. Assim, em resposta à necessidade de nutrição da prole ainda no corpo materno, as cecílias vivíparas foram evolutivamente selecionadas para produzir alimento nas paredes dos ovidutos (canais que alojam os filhotes) até a sua liberação no meio externo hostil; simultaneamente, os filhotes foram selecionados para apresentarem dentes fetais especializados para a extração de alimento desses canais [3].

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Outro exemplo de cuidado com os filhotes foi observado em cecílias ovíparas. Em espécies que aninham os filhotes, percebeu-se uma mudança da cor azul chumbo, típica dos adultos de ambos os sexos, para uma cor opaca e branca (Figura 2). Isso ocorreu pelo fenômeno de dermatofagia, isto é, um comportamento alimentar da prole, que raspa e se alimenta da pele da mãe, rica em gorduras e proteínas, utilizando também os dentes fetais, até duas vezes por semana [3,4].

As estratégias anteriores eram conhecidas pelos pesquisadores há décadas, mas não explicavam satisfatoriamente como os filhotes cresciam tão rápido apenas com os nutrientes adquiridos pela dermatofagia. Essa questão foi respondida recentemente pela pesquisa de Carlos Jared e Pedro Luiz Maiho-Fontana, que evidenciou que mesmo as cecílias ovíparas, com enfoque para a espécie Siphonops annulatus, produzem uma substância nutritiva para os filhotes. Por meio de glândulas nos ovidutos, elas liberam um líquido com composição similar à do leite dos mamíferos pela cloaca, múltiplas vezes ao dia. Ainda mais surpreendente foi a descoberta  de que a liberação do “leite” é estimulada pelos filhotes quando estão com fome, por meio da emissão de sons e pelo contato com a mãe [4].

Apesar de a “amamentação” dos filhotes de cecília não ser baseada na produção de leite por uma glândula mamária verdadeira, como a dos mamíferos, a nutrição da prole pela mãe é algo comum entre esses animais e os homens. Na espécie humana, a amamentação é um processo complexo, sendo regulada principalmente por dois hormônios produzidos pelo sistema nervoso: prolactina e ocitocina. A prolactina atua na glândula mamária, promovendo a produção de leite, e é altamente dependente do estímulo gerado pela sucção do bebê para ser produzida. A ocitocina, por sua vez, libera o leite armazenado nas glândulas e está relacionada à criação de um vínculo entre a mãe e seu filho, por meio dos estímulos mecânicos do bebê sobre o seio materno durante a amamentação [3,4,10].

A pesquisa de Carlos e Pedro evidenciou que o cuidado parental, habilidade associada de imediato aos mamíferos e às aves, está presente também nos animais em que ela é menos óbvia ao senso comum. Além disso, apresenta uma nova perspectiva sobre as cecílias, criaturas fascinantes ainda pouco conhecidas pela comunidade, mas que são um exemplo do sucesso das estratégias de adaptação dos seres vivos ao ambiente, determinadas pela evolução, frente aos desafios. As cecílias são fonte de conhecimento acerca de como preservar as espécies para otimização do curso da vida no planeta [3,4].

Referências Bibliográficas

[1] New World Encyclopedia. Mammal. Disponível através do link:  https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Mammal. Acesso em: 10 jul. 2024.

[2] Biologia Net. Glândulas mamárias.  Disponível através do link: https://www.biologianet.com/anatomia-fisiologia-animal/glandulas-mamarias.htm. Acesso em: 10 jul. 2024.

[3] Portal Butantan. Filhotes de cobras-cegas são alimentados com “leite materno”, mostra estudo de pesquisadores do Butantan publicado na Science. Disponível através do link: https://butantan.gov.br/noticias/filhotes-de-cobras-cegas-sao-alimentados-com-%E2%80%9Cleite-materno%E2%80%9D-mostra-estudo-de-pesquisadores-do-butantan-publicado-na-science. Acesso em: 10 jul. 2024.

[4] Pedro L, Mailho-Fontana et al. Milk provisioning in oviparous caecilian amphibians. Science, v. 383, p. 1092-1095, 2024. Disponível através do link: https://doi.org/10.1126/science.adi5379. Acesso em: 10 jul. 2024.

[5] National Geographic. Cobras-cegas. Disponível através do link: https://www.nationalgeographicbrasil.com/animais/cobras-cegas. Acesso em: 10 jul. 2024.

[6] Enciclopédia Significados. Significado de metamorfose. Disponível através do link: https://www.significados.com.br/metamorfose/. Acesso em: 10 jul. 2024.

[7] Britannica, Animals and Nature. Amphibian. Disponível através do link: https://www.britannica.com/animal/amphibian/General-features. Acesso em: 10 jul. 2024.

[8] MSD Manual: Veterinary Manual. Overview of Amphibians. Disponível através do link: https://www.msdvetmanual.com/exotic-and-laboratory-animals/amphibians/overview-of-amphibians. Acesso em: 10 jul. 2024.

[9] Britannica, Animals and Nature. Gymnophiona. Disponível através do link: https://www.britannica.com/animal/caecilian-amphibian. Acesso em: 10 jul. 2024.

[10] MEDICINANET.  Aleitamento materno. Disponível através do link: https://www.medicinanet.com.br/conteudos/revisoes/2945/aleitamento_materno.html. Acesso em: 10 jul. 2024.

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