
A biotecnologia como ferramenta para exploração espacial
Maria Vitória de Oliveira Silva¹, Vinicius Marx Silva Delgado¹, Vitor de Morais Santos²
¹Graduandos do curso de Bioquímica (UFSJ-CCO)
¹Graduando do curso de Farmácia (UFSJ-CCO)
v.2, n.6, 2024
Junho de 2024
Tratando-se de Ciência, existe uma linha tênue entre a realidade e a ficção, coisas que outrora eram tidas como impossíveis ou até o momento impensadas, hoje fazem parte do cotidiano da humanidade. Todos os dias estão presentes na sociedade avanços científicos-tecnológicos que transformam a vida do ser humano em diversos aspectos, da medicina à astronomia, perpassando por todas as áreas do conhecimento. Diante disso, surge no imaginário dos apaixonados pelo espaço (Figura 1) a grande questão: o ser humano habitará outros planetas? [1].
Como dito por Kostantin Tsiolkovsky “A Terra é o berço da humanidade, mas ninguém pode viver no berço para sempre!”. Neste contexto o termo Terraformar merece atenção. Trata-se de conceito revolucionário que tem cativado cientistas e mentes brilhantes pelo mundo. Essa audaciosa ideia envolve a transformação de um planeta inóspito (inabitável) em um ambiente habitável a formas de vidas terrestres, incluindo vida humana. Neste cenário, um mundo árido (extremamente seco) ou gélido (muito frio) pode ser gradualmente transformado em um lugar em que se seja possível respirar, e viver plenamente. Esse desafio inspirador é empreendido na esperança de terraformação de Marte, tornando o planeta vermelho, de paisagens desérticas e inóspitas, em um segundo lar para a humanidade [2,3].

Figura 1: Exploração espacial.
Fonte:https://www.neoteo.com/la-tierra-desde-la-estacion-espacial-internacional-en-vivo/
À medida que se adentra no universo instigante da terraformação, é necessário explorar não somente as técnicas e tecnologias para realizar essa façanha monumental, como também as implicações, éticas, filosóficas e científicas que acompanham esse empreendimento audacioso. Pode-se considerar como a terraformação de Marte pode redefinir a compreensão do próprio conceito de “habitabilidade” e expansão de horizontes além dos limites da Terra. Incluindo o papel crucial desempenhado pela biotecnologia na adaptação de organismos terrestres na finalidade de sobreviver em um ambiente marciano hostil, abrindo caminho para avanços significativos em áreas como a Genética e a Biologia Sintética (engenharia de organismos) [4].
Ao explorar esse vasto potencial da terraformação do Planeta Marte, a humanidade encontra-se diante não apenas de uma jornada científica e tecnológica, todavia também de uma busca por desvendar os mistérios do cosmos e moldando o destino da humanidade além dos confins da Terra [5].
Marte, conhecido como o quarto planeta do sistema solar, é composto por minérios de ferro em seu solo, que lhe dão o nome de planeta vermelho. É um dos corpos mais explorados, no qual foram encontradas evidências de que o planeta era úmido e quente a milhares de anos, carregando o objetivo de, eventualmente, possibilitar o transporte de humanos à sua superfície [2].
Apesar de ser um planeta com características semelhantes a Terra, possui um ambiente com gravidade e exposição à radiação diferente em relação ao nosso planeta, o que torna a colonização e terraformação um desafio que requer uma série de mudanças, como a transformação da atmosfera repleta de dióxido de carbono (o principal gás que liberamos com nossa respiração) em uma rica em oxigênio (um gás vital para seres humanos), aumento da temperatura de 63°C negativo para cerca de 6°C e água corrente em riachos antes secos e gelados, permitindo o crescimento de plantas [6].
Em meio às diversas missões realizadas, existem pontos de preocupação que afetam diretamente o seu andamento, como a saúde dos astronautas. Durante viagens espaciais de longa duração, como em uma missão a Marte, onde a tripulação viaja em um módulo limitado por cerca de 9 meses, podem ocorrer danos irreversíveis.
Os passageiros são afetados por níveis aumentados de radiação, que aumentam o risco de desenvolvimento de câncer, de doenças neurodegenerativas (que causam a morte de neurônios) e outros efeitos negativos sobre o cérebro, que podem ser atenuados com a suplementação de substâncias antioxidantes: que podem oferecer efeitos protetores adicionais contra radicais livres (espécies prejudiciais ao organismo). A distância da Terra causa estresse psicológico nos astronautas, atrapalhando a dinâmica da equipe, e, estando em uma situação de confinamento e isolamento, a psicologia humana é significativamente alterada. Isto pode levar a déficits neurológicos, desregulação imunológica (no sistema de defesa) e aumento da ansiedade; as estratégias de gestão destas situações incluem medicamentos antidepressivos, antipsicóticos e ansiolíticos. Nestes voos espaciais, a tripulação está condicionada a microgravidade, que é a condição de quase ausência de peso. Este ambiente único também induz mudanças pronunciadas no corpo humano, como SAS, deslocamento de fluido cefálico e SANS, perda óssea e atrofia muscular, que possuem como solução suplementos de cálcio, vitaminas D e K, gorduras, ômega-3 e proteínas. Existem evidências crescentes de que manter uma população saudável e diversificada de micróbios é essencial para um corpo saudável. No entanto, a ingestão microbiana em missões espaciais é gravemente deficiente, devido a ausência de microorganismos nos alimentos dos astronautas para prolongar a vida útil e ao ar fortemente filtrado, que minimiza o risco de infecções, acarretando o uso de probióticos (microorganismos vivos que proporcionam benefícios à saúde quando consumidos) e prebióticos (alimentos que favorecem a sobrevivência de probióticos) para neutralizar a desregulação do microbioma da tripulação [7].
Em média, os astronautas consomem cerca de 20 medicamentos por semana, porém, no espaço, os medicamentos podem degradar-se mais rapidamente, o que é uma preocupação em viagens espaciais de longa duração [8]. Tendo isso em consideração, através do uso da medicina espacial, biotecnologia e outras ciências multidisciplinares – como biologia sintética e biofabricação -, pesquisas são feitas em busca de soluções [9,12].
Todos os processos em seres vivos são regidos por interações entre macromoléculas, grandes “blocos” que interagem entre si para realizarem os processos químicos em seres vivos. Os lipídeos, por exemplo, se aglomeram para formar o “corpo” do microrganismo, sendo como as paredes de uma fábrica; enquanto os carboidratos são como o “combustível” que a fábrica usa para manter suas máquinas funcionando. Essas “máquinas” seriam as proteínas, as moléculas mais complexas e as principais responsáveis pela bioquímica dos microrganismos. O que a biotecnologia faz é ensinar um organismo a fazer o mesmo processo que outro e que antes ele não tinha capacidade de fazer sozinho. Isso é possível porque além das proteínas, os organismos também têm seu genoma, composto pelo DNA. Nele, existem regiões chamadas de genes, que agem como vários protocolos que ensinam e controlam o organismo a fazer e operar sua maquinaria celular. Dessa forma, podemos ensinar uma bactéria a produzir insulina humana, por exemplo.
A parte mais importante é que a bactéria seria equivalente a uma fábrica equipada com os melhores equipamentos disponíveis no mercado. Este microorganismo precisa apenas ser devidamente ensinado e todos os seus descendentes irão produzir medicamentos de maneira rápida, eficiente e barata [13].
No projeto Space Synthetic Biology (SynBio), localizado no Ames Research Center da NASA, no Vale do Silício, na Califórnia, por exemplo, realizam-se pesquisas que utilizam microrganismos alimentares para produzir nutrientes humanos durante missões espaciais de longa duração e outros compostos de alto valor, como medicamentos, gorduras saudáveis, proteínas e até mesmo uma forma de cimento, a partir de recursos locais por meio da biofabricação microbiana [14].
Já o projeto Translational Research Institute for Space Health (TRISH) está desenvolvendo um método para desenvolvimento e liberação de medicamentos diretamente dentro do estômago do astronauta, através do uso de bactérias Escherichia coli, que irão produzir e liberar melatonina, cafeína e acetaminofeno, comumente usados para tratar dores de cabeça e distúrbios do sono. No mesmo projeto estão sendo desenvolvidas plantas geneticamente modificadas para atender as necessidades dos astronautas em missões espaciais. As plantas são muito mais complexas do que as bactérias e fungos, mas essencialmente, são idênticas na analogia que criamos para descrever as biofábricas. Alface geneticamente modificada já foi cultivado a bordo da Estação Espacial Internacional para a produção de substâncias como: hormônio paratireoidiano, fator estimulador de colônias de granulócitos e peptídeos antifúngicos. Esses produtos servem especificamente para amenizar os efeitos da microgravidade na medula óssea, amenizar os efeitos da radiação e como remédio para tratamento de infecções causadas por fungos. Portanto, percebe-se a importância de pesquisas contínuas, pois proporcionam soluções para o que antes era um problema, usando a multidisciplinaridade como fonte, proporcionando grandes descobertas e oportunidades [15-18].
Referências Bibliográficas
[1] - Kaku M. (2018). The future of humanity: terraforming Mars, interstellar travel, immortality, and our destiny beyond Earth. Doubleday: New York, 368 p.
[2] - Bolles D. Mars. Disponível através do link: https://science.nasa.gov/mars/. Acesso em: 05 jun 2024.
[3] - Fogg MJ. Terraforming Mars: A review of concepts. Engineering Earth: The Impacts of Megaengineering Projects, p. 2217-2225, 2010.
[4] - Conde-Pueyo N, Vidiella B, Sardanyés J, Berdugo M, Maestre FT, De Lorenzo V, Solé R. Synthetic biology for terraformation lessons from mars, earth, and the microbiome. Life, v. 10, n. 2, p. 14-19, 2020.
[5] - Graham JM. The biological terraforming of Mars: planetary ecosynthesis as ecological succession on a global scale. Astrobiology, v. 4, n. 2, p. 168-195, 2004.
[6] - Caridade JB, Dias BLdoN, Mendes TdeS. Astrobiologia e as Missões Tripuladas para a Colonização de Marte. Revista Científica Multidisciplinar, v. 2, n. 3, p. 75–83, 2021. Disponível através do link: https://recima21.com.br/index.php/recima21/article/view/141. Acesso em: 05 jun 2024.
[7] - Seoane-Viaño I, Ong JJ, Basit AW, Goyanes A. To infinity and beyond: Strategies for fabricating medicines in outer space. Int J Pharm, v. 4, p.100121, 2022. Disponível através do link: https://doi.org/10.1016/j.ijpx.2022.100121. Acesso em: 05 jun 2024.
[8] - Morgan MF, Diab J, Gilliham M, Mortimer JC. Green horizons: how plant synthetic biology can enable space exploration and drive on Earth sustainability. Current Opinion in Biotechnology, v. 86, n. 0958-1669, p. 103069, 2024.
[9] - Solé RV, Montañez R, Duran-Nebreda S. Synthetic circuit designs for earth terraformation. Biology Direct, v. 10, p. 1-10, 2015.
[10] - Solé RV, Montañez R, Duran-Nebreda S, Rodriguez-Amor D, Vidiella B, Sardanyés J. Population dynamics of synthetic terraformation motifs. Royal Society Open Science, v. 5, n. 7, p. 180121, 2018.
[11] - Citton Y. Terraformation. In Handbook of the Anthropocene: Humans between Heritage and Future, p. 297-300. Cham: Springer International Publishing, 2023.
[12] - Stoner I. The Ethics of Terraforming: A Critical Survey of Six Arguments. Terraforming Mars, p. 99-115, 2021.
[13] - Averesch NJH, Berliner AJ, Nangle SN et al. Biofabricação microbiana para exploração espacial – o que levar e quando fazer. Nat Commun, v. 14 , p. 2311, 2023. Disponível através do link: https://doi.org/10.1038/s41467-023-37910-1. Acesso em: 05 jun 2024.
[14] - Bowman A. Space Synthetic Biology. Disponível através do link: https://www.nasa.gov/space-synthetic-biology-synbio/. Acesso em: 05 jun 2024.
[15] - McMahon S. The aesthetic objection to terraforming Mars. The ethics of space exploration, p. 209-218, 2016.
[16] - Sleator RD, Smith N. Escape from planet Earth: From directed panspermia to terraformation. Planet Formation and Panspermia: New Prospects for the Movement of Life through Space, p. 119-124, 2021.
[17] - Ardelean II, Moisescu C, Popoviciu DR. Magnetotactic bacteria and their potential for terraformation. In From Fossils to Astrobiology: Records of Life on Earth and Search for Extraterrestrial Biosignatures. Dordrecht: Springer Netherlands, p. 335-350, 2009.
[18] - Sparrow R. The ethics of terraforming. Environmental Ethics, v. 21, p. 227-246, 1999.